quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Ciríaco x A República


Breves considerações acerca da vida de um capoeira na virada do século XIX/XX

Marco Castilho Felício


Ciríaco Francisco da Silva, vulgo Macaco, talvez seja um nome conhecido entre os praticantes mais interessados na arte-luta. Natural de Campos (RJ), sujeito elegante – sempre acompanhado de sua bengala, ou “Santo Antônio 16”, como ele preferia chamá-la – entre grande parte dos cariocas de hoje, ele não passa de um anônimo (pesquisando no Google Maps, não é sequer nome de rua). Entretanto, nem sempre foi assim. Não que os dias tenham sido melhores. Aliás, pelo contrário. Mas por ironia do destino e por contradições peculiares de nossa história, quis o tempo que um negro pobre nascido em 1872, capoeira e morador dos cortiços do Rio de Janeiro tivesse seus dias de glória justamente num momento em que todas as suas qualidades, características e condições concretas de vida fossem, sob o ponto de vista do poder instituído, algo indesejável. Ciríaco era exatamente o que a nascente República queria extirpar da sociedade.

No dia 15 de maio de 1909, a revista O Malho publicou uma reportagem sobre o acontecimento que transformou Ciríaco numa celebridade: a luta do capoeirista contra o japonês Sado Miako, expoente do jiu-jitsu que ministrava ensinamentos da luta para a Marinha do Brasil, ocorrida no Pavilhão Internacional Paschoal Segreto. Nas palavras do próprio Ciríaco, eis o desenrolar da contenda: ”Cheguei em frente com ele, dei as minha cuntinença e fiz a primeira ginga, carculei a artura do negrinho, a meiada das perna, risquei com a mão p’ra espantá tico-tico, o camarada tremeu, eu disse: então? Como é? Ou tu leva o 41 dobrado ou tu está ruim comigo, pruque eu imbolá, não imbolo. O japonês tremeu, risquei ele por baixo, dei o passo da limpeza gerá, o negrinho aturduou, mexeu, mas não caiu”. Durante a luta, Ciríaco percebeu as reações do público ao seu favor e continua no relato: “Eu me queimei e já sabe: tampei premero, distroci a esquerda, virei a pantana, óia o hóme levando com o rabo-de-arraia pela chocolateira. Deu o ar comprimido e foi cumê poeira. Aí eu fiz o manejo da cumprimentação e convidei o hóme p’ro relógio de repetição, mas o gringo se acontentou com a chamada e se deu por sastifeito”. O êxito na luta resultou em “dezoito mil réis” jogados pela platéia, entrevistas a jornais e demonstrações para estudantes do Rio de Janeiro.


Mas é necessário que o acontecimento seja analisado em seu contexto. Durante quase todo o século XIX, os debates parlamentares sobre o que fazer com a enorme massa de escravos, caso a escravidão acabasse, e em como fazer do Brasil um país racialmente branco, livre da presença negra, foram constantes no parlamento. O pensamento de Tavares Bastos, jurista e político atuante na segunda metade do século XIX, reflete bem isso. Defendia ele, sobre o estímulo à imigração européia, que: “O homem livre, o homem branco, além de ser muito mais intelligente que o negro, que o africano boçal, tem o incentivo do salário que percebe, do proveito que tira do serviço, da fortuna que enfim pode accumular a bem da sua família. Há entre esses dous extremos, pois, um abysmo que separa o homem do bruto [...] Cada africano que se introduz no Brazil, além de afugentar o emigrante europeu, era em vez de obreiro do futuro, o instrumento cego, o embaraço, o elemento de regresso das nossas indústrias”.

Na virada do século, discursos racistas que defendiam o branqueamento da população – o tal “racismo científico” – ainda encontravam forte repercussão entre as elites e o meio acadêmico. Oliveira Vianna, outro jurista e defensor da eugenia, referência nas primeiras décadas do século XX, acreditava que: “A miscigenação roubou o elemento negro de sua importância numérica, diluindo-o na população branca. Aqui o mulato, a começar da segunda geração, quer ser branco, e o homem branco (com rara exceção), acolhe-o, estima-o e aceita-o no seu meio. Como nos asseguram os etnólogos, e como pode ser confirmado à primeira vista, a mistura de raças é facilitada pela prevalência do ‘elemento superior’. Por isso mesmo, mas cedo ou mais tarde, ela vai eliminar a raça negra daqui”.

Na mesma onda, a cidade do Rio de Janeiro, desde os anos de 1880, sofria profundas transformações urbanísticas, orientadas por idéias higienistas, cujos principais propósitos eram a modificação/eliminação das áreas onde se encontravam as chamadas “casas de habitação” (casarões velhos que tinham seus quartos alugados para diferentes famílias) e principalmente os malfadados cortiços, maciçamente habitados por escravos e capoeiras. Não somente o espaço urbano, mas várias manifestações negras foram sistematicamente perseguidas pela ordem. Nesse momento, a capoeira, considerada pelo estudioso Luiz Sérgio Dias como “prática negra organizada”, é criminalizada e enquadrada no Código Penal de 1890. De maneira geral, a “turba” carioca está sob inconveniente assédio por parte do Estado – vide aí a Revolta da Vacina.

Cortiço no Rio de Janeiro da virada do século XIX-XX

Voltemos ao nosso camarada Ciríaco. Havia, de um lado, uma estrutura político-ideológica francamente racista, e de outro, uma cidade que, se na época das maltas era a “cidade-esconderijo” dos capoeiras e escravos, oferecendo sempre vias de fuga e espaços de socialização (como os cortiços), no período da contenda do ilustre personagem, ela apresentava-se como “cidade-inimiga”.

Surge então um paradoxo: apesar da ordem vigente, perseguidora dos capoeiras, existe também uma grande receptividade (ainda que problematizável, inclusive do ponto de vista das relações raciais) popular, mostrada na própria luta de Ciríaco e Sado Miako. Os jornais apresentavam discursos exaltando a capoeira, sobre sua importância como a “luta brasileira”, revelando indícios sobre manifestações de nacionalidade, fortemente exploradas anos mais tarde no governo de Getúlio Vargas (também sobre isso, ler O Jogo da Capoeira: corpo e cultura popular no Brasil, de Luiz Renato Vieira). A própria manifestação de apreço por parte da platéia durante e após o embate, de certa forma, demonstra isso, assim como a notícia de falecimento de Ciríaco veiculada até em Porto Alegre, em 21 de maio de 1912 (vitimado pela uremia). A capoeira tornava-se então a benção e maldição do Brasil, e em particular, do Rio de Janeiro.


Como nos lembra Jair Moura, Ciríaco e seu rabo-de-arraia certeiro colaboraram muito para a reafirmação da capoeiragem, desarticulada pela repressão no Rio de Janeiro desde as últimas décadas do século XIX. Se Mestre Bimba e Mestre Pastinha foram representantes que reivindicavam a importância da capoeira como grande manifestação cultural brasileira frente ao poder institucional e a setores da intelectualidade, Ciríaco é uma espécie de titã negro; é a cara de uma capoeira cujo único poder era seu enorme apelo popular.



Referências:


CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

MOURA, Jair. A Capoeiragem no Rio de Janeiro através dos Séculos. Salvador: JM Gráfica e Editora LTDA, 2009.

SILVA, Eduardo. Dom Obá II d’África, o príncipe do povo: vida, tempo e pensamnto de um homem de cor. São Paulo : Cia. das Letras, 1997.

THEODORO, Mário. (Org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição. Brasília : Ipea, 2008.

VIEIRA, Luiz Renato. O jogo da capoeira: corpo e cultura popular no Brasil. Rio de Janeiro: Sprint, 1998.

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